quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Que Verbo é essa Flor? Que Flor é esse Verbo?

Heloisa Arcoverde *


Verbo Flor

Marcelo Mário de Melo

V1 se eu flor
V2 se tu flores
V3 se ele flor
V4 se nós flormos
V5 se vós flordes
V6 se eles florem

V7 E se não flores assim
V8 Para mim
V9 Plantarei um cacto
V10 No meu jardim

Publicado no projeto Projeto Poesia Circulante
Fundarpe – 1985.


Trabalhar o poema Verbo Flor exige um desafio: perceber o lúcido da conjugação de um verbo que não existe, sem procurar, de imediato,uma interpretação/leitura redutora.

O titulo do poema provoca um estranhamento, ao criar a ilusão de que flor pode ser um verbo gerado por uma (falsa) etimologia: florir? Florescer? Flor!

Para fazer da flor um verbo, os versos da primeira estrofe são construídos a partir de uma conjugação gramaticalmente convincente. O leitor decodifica o modo (subjuntivo), o tempo (futuro) e as flexões de número e pessoa:

V1 se eu flor
V2 se tu flores
V3 se ele flor

Nascido em Caruaru no ano de 1944. Escreve mini contos e textos de humor. Publicou: Os Quatro Pés da Mesa Posta. Pelas Edições Piratas, 1980.

V4 se nós flormos
V5 se vós flordes
V6 se eles florem

O verbo flor surge da hesitação entre o verbo ser (se eu for) e o significado da palavra geradora-flor. O tropo gramatical vem de um desvio morfológico. O substantivo desliza de uma categoria gramatical a outra, constituindo-se num radical flor para as desinências ES / MOSDES EM.

O neo-verbo foi motivado por uma estrutura lingüística já existente:

A nível morfológico identifica-se com o verbo ser no futuro do substantivo:
Se eu for / se eu flor.

A nível semântico, conserva o campo associativo do semema flor.


A leitura/ conjuração da primeira estrofe é marcada pelo compasso ternário - os seis versos trissílabos são acentuados nas 2ª. E 3ª. Silabas:


Se EU Flor
Se TU Flores

A assonância flô recai na 3ª Silaba de todos os versos e acentua a cadencia que uma conjuração exige. Recita-se, facilitada a memorização, o verbo tal um poema. Ou vice-versa.

Versos metalinguisticos. Na conjuração, o próprio código discorre sobre ele mesmo. O verbo encontrz-se em seu estado latente, virtual, à espera de uma contextualização que vai acontecer na segunda estrofe:

V 7 E se não flores assim
V8 Para mim
V 9 Plantarei um cacto
V 10 No meu jardim

O estranhamento do verbo flor (desvio morfológico) vai ser diluído no campo semântico pela expansão do sema/vegetal/em outros sememas: plantarei – cacto- jardim, que teceram a construção metafórica do poema.

A função poética, que coexiste no texto ao lado da função metalingüística, quando o poema vai instaurando seu próprio código, junta-se, agora, as funções emotiva e conativa:


Eu (plantarei),(para) mim,meu (jardim);
Tu (não flores)

Essas duas funções especificam no discurso ( eu, sujeito do enunciado vs tu, objeto amado) o que antes se apresentava como geral, abrangente ,indeterminado: eu/tu/ele/nós/vós/eles – metalinguistico.

As funções emotiva + conativa + poética apontam, então para uma leitura onde o lirismo aflora. O texto (jardim) será o espaço (terreno) para a flor ou o cacto.

A construção metafórica do poema, partindo de um tronco comum o sema/ vegetal/: flores, plantarei, cacto, jardim, polariza em torno de :

Sentimentos positivos, em euforia
/beleza/: flor, jardim
/perfume: flor
/amor/: jardim= coração
/proximidade/: para mim

Sentimentos negativos, em disforia
/sofrimento/ cacto
/ausência/ não.


Esta oposição é referendada no nível fônico pela assonância, presença de rimas: assim/ mim/ jardim= ausência de rima: cacto.

Os elementos se, não, assim, para mim, apontam para o desfecho: da ameaça se não à auto-punição plantarei um cacto no meu jardim. A condição se de uma possível (futuro) do castigo (cacto) que eu – sujeito/emissor ( meu jardim) me imponho (plantarei, para mim).

Atingida a compreensão global do texto, verifica-se que a metáfora de uso – flor, apesar de pertencer ao inventário poético, foi montada a partir de um tropo gramatical (o vocábulo já existe mas muda de função)que fecundou o poema, desviando-o dos clichês românticos.

O poeta apropriou-se dos recursos líricos, mas reelaborando a linguagem, pelo fazer poético, afastou o sentimentalismo comum que teria feito do texto, apenas, a expressão de sua emoção. Brincando de conjurar um pseudo-verbo, desviou, poeticamente, a atenção para as multipossibilidades com a linguagem.

Sugestão pedagógica

Partindo do título e de sua relação com a primeira estrofe, levar o aluno a:

• Avaliar o tropo gramatical – flor = verbo e sua expansão paradigmática nesta
estrofe, conforme o padrão do código lingüístico (desinência verbal).

• Analisar sua atualização na segunda estrofe:

-situação de comunicação eu/tu
-função emotiva/conativa
-função estética.

Criatividade

- Propor jogos de linguagem em que os alunos construam novos verbos, à maneira do verbo flor.

Recife, 30 de maio de 2007

* Heloisa Arcoverde é mestre em literatura e titular da Diretoria de Literatura e editoração da Fundação de Cultura Cidade do Recife

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