segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Ganhar com a Crise


Frederico Katz
[Economista e Consultor do NEAL - Núcelo de Estudos para a América Latina/Universidade Católica de Pernambuco]

A crise econômico/financeira que, em maior ou menos intensidade, envolve o mundo todo, deve servir, quando menos, para nos ensinar algumas lições. Seguem-se quatro notas sobre o tema. São constatações e possíveis respostas a questões ainda controversas.
A primeira é uma constatação, de que o credo Liberal, baseado na idéia de que o livre funcionamento dos mercados conduz a economia de forma perfeita, recebeu um enorme golpe. Perde assim, a nosso ver, qualquer possibilidade de pretensão ao status de ‘verdade absoluta’. Da mesma maneira que, vinte anos atrás, se observou que o Estado, conduzindo de forma unilateral e sem regulação a economia e os negócios de suas empresas, está propenso a erros, verifica-se agora que a conclusão que se tirava sobre a superioridade, e mesmo blindagem, da gestão pelo interesse privado, não é mais virtuosa e também está sujeita a desvios que podem até ser mais desastrosos.
Consideramos que a simples menção de palavras como, Parmalat, Enron, J.P. Morgan, Derivativos, Sub-Prime, Circuit Breaker e 700 bilhões de dólares americanos, completam o argumento. Não insistimos no ponto para que não soe como referência “a corda em casa de enforcado”.
A segunda constatação é que entre os fanáticos pelo Credo Liberal, e isto é certamente verdade para outros credos, alguns não são tão fanáticos. Vem de alguns de seus lideres a proposta de que, agora sim, o Estado intervenha. Será que os princípios que constituíam as “leis econômicas mais naturais e justas” mudaram? Certamente não.
O que há é que, como em outras instancias, o discurso se distingue das ações de ordem pratica, toda vez que interesses poderosos estão em jogo. Surgem assim as propostas de todas estas injeções exógenas, para utilizar um termo tão a gosto dos Liberais, de recursos públicos.
A terceira observação diz respeito à pergunta se os 700 bilhões resolveriam tudo, e não se poderia apresentar mais que uma resposta tentativa.
Infelizmente, o que provavelmente acontecerá é que os Estados envolvidos vão garantir, principalmente, a retenção pelos especuladores de parte da enorme dinheirama de capital fictício que foi ganha nos Cassinos. Isto constituirá uma nova estupenda redistribuição de riqueza, agora real, em favor dos mais ricos.
Se não houver reação pública, os maiores perdedores, entre os envolvidos, serão os pequenos e médios poupadores e tomadores. Depois deste “O Rei está Nu”, se verá a Lei do Valor operando muito fortemente no sentido de recompor uma maior aproximação entre a economia real e os desvarios financeiros. E será unicamente esta, a economia real, a Fênix que, sobre os escombros, condicionará a reconstrução de mais um período de funcionamento “normal” da economia e do “Mercado”, até outro desvario.
Claro, o grau da destruição será maior ou menor, dependendo das formas de intervenção e do tempo que se leve para conseguir a recuperação da confiança, o que depende da convicção da sobredeterminação do real sobre o, fungível, monetário.
A quarta nota observa que a crise é de fato tão ampla e profunda, que seus estilhaços devem atingir longe, no outro extremo do espectro ideológico. A lição aqui é que é necessário rever o entendimento da paradigmática “Teoria da Financeirização”. Sem duvida a esfera financeira tem sido, nas últimas décadas, uma instancia de muita força na economia mundial. Porém, como temos dito, e agora perece que se vê a confirmação, não se tratava de uma situação definitiva, um beco sem saída.
Não se tratava do “Fim da História”, nem mesmo da Historia do Capitalismo. Apesar das importantes denuncias dos seguidores desta “Teoria”, os mesmos confundiram uma fase do capitalismo, no sentido de um período onde certas características predominam e que eventualmente se repete como as fases da lua, com o que seria uma etapa diferente de tudo que antes ocorrera e que não se repetiriam etapas anteriores, como no caso dos girinos que não voltam a ser ovos e evoluem irreversivelmente para anfíbios.
Se, conforme cogitamos na nota três, a esfera financeira sair fortemente abalada desta crise, e a economia real, a esfera da produção, retoma sua capacidade de determinação conjunta com a esfera da circulação, muitas das conclusões baseadas na Teoria da Financeirização terão que ser revistas.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Que Verbo é essa Flor? Que Flor é esse Verbo?

Heloisa Arcoverde *


Verbo Flor

Marcelo Mário de Melo

V1 se eu flor
V2 se tu flores
V3 se ele flor
V4 se nós flormos
V5 se vós flordes
V6 se eles florem

V7 E se não flores assim
V8 Para mim
V9 Plantarei um cacto
V10 No meu jardim

Publicado no projeto Projeto Poesia Circulante
Fundarpe – 1985.


Trabalhar o poema Verbo Flor exige um desafio: perceber o lúcido da conjugação de um verbo que não existe, sem procurar, de imediato,uma interpretação/leitura redutora.

O titulo do poema provoca um estranhamento, ao criar a ilusão de que flor pode ser um verbo gerado por uma (falsa) etimologia: florir? Florescer? Flor!

Para fazer da flor um verbo, os versos da primeira estrofe são construídos a partir de uma conjugação gramaticalmente convincente. O leitor decodifica o modo (subjuntivo), o tempo (futuro) e as flexões de número e pessoa:

V1 se eu flor
V2 se tu flores
V3 se ele flor

Nascido em Caruaru no ano de 1944. Escreve mini contos e textos de humor. Publicou: Os Quatro Pés da Mesa Posta. Pelas Edições Piratas, 1980.

V4 se nós flormos
V5 se vós flordes
V6 se eles florem

O verbo flor surge da hesitação entre o verbo ser (se eu for) e o significado da palavra geradora-flor. O tropo gramatical vem de um desvio morfológico. O substantivo desliza de uma categoria gramatical a outra, constituindo-se num radical flor para as desinências ES / MOSDES EM.

O neo-verbo foi motivado por uma estrutura lingüística já existente:

A nível morfológico identifica-se com o verbo ser no futuro do substantivo:
Se eu for / se eu flor.

A nível semântico, conserva o campo associativo do semema flor.


A leitura/ conjuração da primeira estrofe é marcada pelo compasso ternário - os seis versos trissílabos são acentuados nas 2ª. E 3ª. Silabas:


Se EU Flor
Se TU Flores

A assonância flô recai na 3ª Silaba de todos os versos e acentua a cadencia que uma conjuração exige. Recita-se, facilitada a memorização, o verbo tal um poema. Ou vice-versa.

Versos metalinguisticos. Na conjuração, o próprio código discorre sobre ele mesmo. O verbo encontrz-se em seu estado latente, virtual, à espera de uma contextualização que vai acontecer na segunda estrofe:

V 7 E se não flores assim
V8 Para mim
V 9 Plantarei um cacto
V 10 No meu jardim

O estranhamento do verbo flor (desvio morfológico) vai ser diluído no campo semântico pela expansão do sema/vegetal/em outros sememas: plantarei – cacto- jardim, que teceram a construção metafórica do poema.

A função poética, que coexiste no texto ao lado da função metalingüística, quando o poema vai instaurando seu próprio código, junta-se, agora, as funções emotiva e conativa:


Eu (plantarei),(para) mim,meu (jardim);
Tu (não flores)

Essas duas funções especificam no discurso ( eu, sujeito do enunciado vs tu, objeto amado) o que antes se apresentava como geral, abrangente ,indeterminado: eu/tu/ele/nós/vós/eles – metalinguistico.

As funções emotiva + conativa + poética apontam, então para uma leitura onde o lirismo aflora. O texto (jardim) será o espaço (terreno) para a flor ou o cacto.

A construção metafórica do poema, partindo de um tronco comum o sema/ vegetal/: flores, plantarei, cacto, jardim, polariza em torno de :

Sentimentos positivos, em euforia
/beleza/: flor, jardim
/perfume: flor
/amor/: jardim= coração
/proximidade/: para mim

Sentimentos negativos, em disforia
/sofrimento/ cacto
/ausência/ não.


Esta oposição é referendada no nível fônico pela assonância, presença de rimas: assim/ mim/ jardim= ausência de rima: cacto.

Os elementos se, não, assim, para mim, apontam para o desfecho: da ameaça se não à auto-punição plantarei um cacto no meu jardim. A condição se de uma possível (futuro) do castigo (cacto) que eu – sujeito/emissor ( meu jardim) me imponho (plantarei, para mim).

Atingida a compreensão global do texto, verifica-se que a metáfora de uso – flor, apesar de pertencer ao inventário poético, foi montada a partir de um tropo gramatical (o vocábulo já existe mas muda de função)que fecundou o poema, desviando-o dos clichês românticos.

O poeta apropriou-se dos recursos líricos, mas reelaborando a linguagem, pelo fazer poético, afastou o sentimentalismo comum que teria feito do texto, apenas, a expressão de sua emoção. Brincando de conjurar um pseudo-verbo, desviou, poeticamente, a atenção para as multipossibilidades com a linguagem.

Sugestão pedagógica

Partindo do título e de sua relação com a primeira estrofe, levar o aluno a:

• Avaliar o tropo gramatical – flor = verbo e sua expansão paradigmática nesta
estrofe, conforme o padrão do código lingüístico (desinência verbal).

• Analisar sua atualização na segunda estrofe:

-situação de comunicação eu/tu
-função emotiva/conativa
-função estética.

Criatividade

- Propor jogos de linguagem em que os alunos construam novos verbos, à maneira do verbo flor.

Recife, 30 de maio de 2007

* Heloisa Arcoverde é mestre em literatura e titular da Diretoria de Literatura e editoração da Fundação de Cultura Cidade do Recife

sábado, 13 de setembro de 2008

Sobre a "Diferença" e Outros Prêts-a-Porter

David Capistrano Filho

Como um processo de americanização da vida partidária, alguns
agrupamentos políticos se transformam em máquinas eleitorais


Com a aproximação de sua Convenção Nacional, dissemina-se no PT uma prática que há um bom tempo já vínhamos percebendo em alguns de seus "notáveis" no estado de São Paulo, e que não deixa de reproduzir uma tendência geral: a prática de um partido voltado exclusivamente para os embates eleitorais.

Essa tendência já havia sido detectada pela maioria dos delegados ao 8º Encontro Nacional do partido. Mas, apesar de as direções eleitas terem expressado a vontade partidária de barrá-la, não conseguiram contrapor-se aos ventos dominantes, soprados justamente por boa parte desses "notáveis". É uma luta difícil, mas não podemos nos furtar de colocar em discussão (aproveitando os debates preparatórios para os encontros estaduais e Nacional) os efeitos deletérios dessa prática e questionar a acomodação do partido a ela.

A transformação de agrupamentos políticos em máquinas eleitorais faz parte de um processo de americanização da vida partidária, que é hoje uma marca típica das democracias ocidentais, a brasileira inclusive. Quem acompanha minimamente a política norte-americana sabe o que isso significa em termos de esvaziamento do conteúdo programático dos partidos e como facilita o tráfico de influência, especialmente dos grandes grupos econômicos.

A rigor, a tendência a que nos referimos aqui não constitui um problema maior para os partidos de direita: sendo seu objetivo principal a defesa de interesses do conjunto ou de frações das classes dominantes no aparato estatal, sua organização exclusiva em torno da lógica eleitoral apenas reitera o fato de que a dominação (econômica, cultural, ideológica) daquelas classes na sociedade já é efetuada por outros meios, além dos políticos em sentido estrito. O embate eleitoral é a maneira "democrática" pela qual esses agrupamentos, ao disputarem entre si a preferência da massa dos eleitores, acabam disputando também (e principalmente) a preferência das elites econômicas.

Assim, a forma americanizada de se organizar politicamente não é um obstáculo para o crescimento de um partido, desde que não tenha em seu horizonte que alterar a dominação em vigor. O que não é o caso - supostamente - dos partidos de esquerda. Se entre seus objetivos está modificar a fundo o status quo, organizar-se apenas para a luta eleitoral conduz a terríveis dilemas.

Um dos dilemas mais evidentes é o seguinte: se assume claramente um discurso e uma prática de enfrentamento dos interesses das elites, seguramente vai se ver privado dos meios - os tais "fatores reais de poder" (dinheiro, mídia etc.) - que lhe permitiriam atingir pelo caminho mais curto a vitória eleitoral. Ou então esta fica inteiramente dependente de jogadas de sorte ou de hábeis articulações de bastidor para dividir o campo adversário. (Diga-se de passagem, durante as últimas eleições, a direção de nossa campanha presidencial bem que se esforçou nesse sentido. Faltou-lhe tanto habilidade quanto sorte ... )

Como a vitória eleitoral é, naturalmente, decisiva para a sobrevivência de partidos organizados para eleições, essa constatação trivial acaba gerando - mais dia, menos dia - a necessidade de atrair a simpatia dos fatores reais de poder. Eis a outra ponta do dilema: isso não é possível senão através de um sutil processo de mútua convergência de discursos e, no limite, de interesses.

Além disso, partidos que se organizam em função do sistema eleitoral podem até ser partidos com vocação para o governo, mas não para o poder. Agrupamentos de direita resignam-se em tornar-se governo e governar segundo uma lógica ditada de fora do governo - isto é, pelas instituições de reprodução do domínio capitalista. Contudo, partidos de esquerda que se deixam submeter a essa lógica não podem fazê-lo sem entrar em aberta contradição com seu programa e objetivos.

Vejamos alguns dos efeitos dessa tendência na prática de nosso partido. Não está no horizonte de um agrupamento político que se submete à lógica eleitoral disputar a hegemonia na sociedade. Interessa-lhe simplesmente a apropriação da máquina estatal e, por meio dela, mobilizar a seu favor os meios que as classes dominantes colocarem a seu dispor. Não é necessário construir meios próprios e eficazes de comunicação com o povo, nem formar militantes para a luta cultural e ideológica, e muito menos para a administração do Estado.

Para os que se sujeitam a essa dinâmica, a vida interna do partido entre uma eleição e outra lhes é indiferente. O que importa é cavar espaços nas instituições e meios de comunicação já existentes.

É claro que esse tipo de prática tanto mais se dissemina quanto maior é o grau de liberdade que tais figuras possuem para transformar em discurso público aquilo que a mídia quer ouvir e reproduzir, ainda que com tinturas ou nuances à esquerda, para dar um pouco de "molho". O que reforça ainda mais a necessidade de atrofiamento da vida interna do partido - a qual, se ativa, pode eventualmente tolher a "liberdade de opinião" dos militantes que têm acesso à imprensa. Nós já vimos isso ocorrer no PT: quando as instâncias partidárias resolvem mexer com a "liberdade de opinião" dessas pessoas, é comum trazerem à baila o velho e conhecido tema do "autoritarismo de esquerda" e da necessidade do respeito à "diferença".

Essas palavras são inocentes somente na aparência. Muitos dos que as usam sabem que, se apresentadas com um certo charme, elas são música para amplos segmentos dos tais "formadores de opinião". Fazer a luta interna com elas não deixa de ser uma maneira de utilizar a lógica eleitoral a favor de suas posições políticas dentro do partido. E, ao se apresentarem para o público como membros "diferentes" do partido (mesmo que tão "iguais" às opiniões dominantes na sociedade), não deixam também de dar um reforço a suas carreiras políticas pessoais.

Pela maneira quase automática com que fazem uso dessas palavras, é provável que alguns desses companheiros não tenham plena compreensão de seu significado. Mas têm feeling suficientemente apurado para perceber o quanto elas podem arrebatar os corações de certos jornalistas: a experiência profissional lhes permitiu desenvolver a habilidade de difundir com algum glamour aquilo que pegam de orelhada por aí. São aquelas palavras bem arrumadinhas e frases feitas. Prêt-à-porter.

Até aqui falamos mais dos efeitos da americanização no campo organizacional, mas é evidente que o fenômeno tem seus reflexos na condução concreta da política em relação aos partidos e governos da ordem. Os seguintes acontecimentos mostram bem isso.

Tempos atrás a imprensa divulgou com algum destaque a reação de um conhecido deputado do PT à decisão do Diretório Nacional (DN) do partido, que havia determinado a um outro deputado petista que retirasse uma proposta sua de emenda à Constituição. O DN a considerara prejudicial à política partidária de combate às "reformas estruturais" do governo FHC.

Mal foi tomada a decisão e o deputado (o outro, não o que propôs a emenda) saiu à procura dos jornalistas - como é de seu costume - para manifestar sua indignação, valendo-se de uma daquelas palavras que infalivelmente atraem os microfones: "autoritarismo". O mesmo mote já foi usado por outros militantes em outras circunstâncias - militantes que tiveram sua "liberdade de ir e vir" restringida pela direção do partido. Algo parecido ocorreu, por exemplo, nos episódios de adesão de petistas renomados ao governo de Itamar Franco e, agora, ao de FHC.

À luz dos refletores, esses episódios são apresentados de uma forma inteiramente despolitizada, como mais um enfrentamento entre uma esquerda "arejada e moderna" e outra, "arcaica". Essa simplificação grosseira, porém, esconde outra vez uma questão muito mais crucial.

Quem no interior do partido pensa a política segundo a lógica eleitoral é sinceramente inclinado a adotar um comportamento mais indulgente em relação aos adversários do campo conservador, pois em seus cálculos estratégicos não está colocada a necessidade de quebra da ordem vigente. Trata-se de melhorar lentamente a ordem que está aí, através de um paciente trabalho de convencimento das classes abastadas sobre a necessidade de fazer concessões: seu discurso é voltado principalmente para os de cima, não para os de baixo.

Daí que privilegiem os palcos em que supõem poderem ser ouvidos pelo outro lado, o que em muitos deles se combina com uma necessidade obsessiva de serem "aceitos". Assim, não é casual que manifestem reservas à conjunção da luta de massas à luta parlamentar - pois vêem na primeira uma ameaça ao clima de diálogo e negociação -, e se sintam permanentemente tentados a compor governos de colaboração. Não é casual também que vejam a avalanche neoliberal como uma força quase invencível, e que reservem à esquerda apenas a tarefa de lhe dar uma interpretação social.

Dentro da esquerda e de nosso partido há hoje duas apostas diferentes para o Brasil. Num campo estão os que não vêem outra alternativa senão embarcar na grande onda que está aí. Sua palavra de ordem é "inserção" do Brasil nas brechas que a ordem econômica internacional tem a oferecer, e das massas trabalhadoras nas brechas que a primeira opção deixar no âmbito interno. Sua insatisfação com a ordem vigente é mais de forma do que de conteúdo: trata-se de dar "transparência" e "representatividade popular" ao processo de inserção - uma deficiência que o PT bem poderia suprir.

No outro campo, porém, há os que apostam num desenvolvimento pautado pelo ponto de vista nacional - e não pelo dos países capitalistas centrais -, e que, portanto, vêem a esquerda à frente de um processo de transformações muito mais profundas. E quem tem um projeto nacional para a sociedade brasileira não pode se resignar ao papel de força auxiliar. Mais do que o governo da República, seu objetivo é a hegemonia na sociedade - o que implica tarefas mais árduas do que as vislumbradas no outro campo: construir uma organização política dos trabalhadores e do povo, veículos próprios de comunicação com as massas e uma política de combate intransigente e global ao neocolonialismo implícito no Consenso de Washington. Eis o que, verdadeiramente, divide nosso partido hoje.

Nada mais positivo para um agrupamento de esquerda do que possuir lideranças carismáticas, que utilizem sua influência difusa e facilidade de comunicação com o povo para fortalecer a organização partidária e sua capacidade de exercer responsabilidades de governo (quando é o caso). Em síntese, transformar essa influência em reforço do conteúdo programático e dos objetivos mudancistas do partido.

Contudo, partidos de esquerda que se submetem a um processo de americanização de seus procedimentos vêem-se diante de um dilema também quanto a essa questão. Lideranças carismáticas que raciocinam exclusivamente segundo a lógica eleitoral tendem a condicionar o desempenho do partido ao seu desempenho pessoal. O primeiro só é importante se fortalecer o segundo. Por isso, até a mesma política executada por outras pessoas tende a causar reações reservadas, quando não de rejeição pura e simples. Não por acaso, a lógica eleitoral altera o eixo da disputa política do conteúdo programático para as personalidades.

Diante de um quadro interno tão grave, não nos resta outra alternativa senão fazer um apelo veemente e público ao que há de saudável em nosso partido - e estamos convictos de que há imensas reservas de forças saudáveis no PT - para revertê-lo.

É preciso que todos os militantes identificados com a análise aqui esboçada se unam e se mobilizem, instiguem essa discussão com outros companheiros e os tragam para a nossa luta.

O futuro do PT depende de nossa capacidade de reagir à sua acomodação às práticas nocivas que identificamos anteriormente. Não deixemos que o mundo da moda e a luz das passarelas pautem nossas disputas internas. Nunca é demais lembrar o destino das mariposas: a luz que as atrai é a mesma que lhes queima as asas...

Mais do que isso: o futuro do PT enquanto um poderoso foco de oposição ao modismo neoliberal depende de nossa capacidade de preservar a tradição de sua independência, de sua vontade fundadora de se tomar uma alternativa cultural, ideológica e de poder neste país.

* Revista Teoria e Debate n°29, junho/agosto de 1995

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Abreu e Lima e as Américas

Paulo Santos de Oliveira

Daqui a um ano e meio, por quase todas as Américas, estará sendo festejado o bicentenário das lutas pela libertação do colonialismo europeu, iniciadas em 1810, após a invasão da Espanha por Napoleão. Os nossos vizinhos de continente, para libertar-se, travaram centenas de batalhas, sofreram matanças indiscriminadas de milhares de civis, foram obrigados a deslocar populações inteiras e a realizar campanhas militares épicas, lideradas por homens da estatura do chileno Bernardo O’Higgins, do argentino San Martin e, acima de todos, do venezuelano Simón Bolívar. Enquanto nós, tupiniquins,não mexemos um dedo para interferir nesse processo.A não ser por um grupo de cinco pernambucanos, encabeçado por José Inácio de Abreu e Lima.
Evadido dos cárceres portugueses, alguns meses após a Revolução de 1817 – e após ser obrigado a assistir o fuzilamento do próprio pai, o Padre Roma, um dos líderes daquele movimento –, o jovem capitão José Inácio embarcou secretamente para os Estados Unidos, em seguida dirigindo-se à Venezuela. E a partir de lá, combatendo ao lado de Bolívar – de quem se tornou amigo e esteio, a ponto de ser designado responsável pela segurança pessoal dele em seus últimos dias, a caminho do exílio – atingiu o posto de general nos exércitos republicanos e ajudou a libertar uma vasta região que também inclui os atuais Panamá, Equador, Peru, Bolívia e Colômbia. Pelo seu desempenho como militar e político, Abreu e Lima conquistou um lugar de destaque entre os heróis dessas nações e no seleto rol dos “Libertadores das Américas”, tornando-se o brasileiro que mais se distinguiu no exterior. Mas isso não é tudo.
Além de militar valoroso, o general também desenvolveu intenso trabalho como jornalista, polemista, ensaísta e historiador. Recebeu de Bolívar a incumbência de defendê-lo num debate intelectual travado na Europa, com ninguém menos que o francês Benjamim Constant. E cabe-lhe o mérito de haver sido o primeiro no continente a propagar as idéias socialistas, mesmo não se tratando do socialismo dito “científico” de Marx e Engels, aos quais não chegou a fazer referência, nem tampouco àquele dos “utopistas”, como Fourier e Saint-Simon, dos quais foi crítico ferrenho. Abreu, embora não abandonando parte dos valores semi-aristocráticos nos quais foi criado, no Engenho Casa Forte, tornou-se um ferrenho progressista, abolicionista e defensor dos humildes. Por isso até ganhou, após voltar ao Brasil, o epíteto jocoso de General das Massas, dado a ele pelo cônego Januário da Cunha Barbosa, autor da comédia “A rusga da Praia Grande ou o quixotismo do General das Massas”, encenada no Rio de Janeiro. Um apelido, aliás, que assumiu plenamente: “pois me considero, mesmo, um dos muitos. Também faço parte deste povo que é depreciado a cada instante, e a quem os espertos chamam ‘vil canalha’, depois de havê-lo enganado para encher os bolsos e enriquecer, às custas da sua boa-fé!”.
Apesar de reverenciado em vários países – e de, por iniciativa do governador Barbosa Lima Sobrinho, emprestar seu nome a um município pernambucano – Abreu e Lima continua desconhecido no seu próprio, inclusive em seu estado natal. Uma ignorância que se estende ao longo processo de lutas pela libertação da América Latina, na qual ele representou papel de relevo, pois os brasileiros não gostam muito de olhar para o seu continente (talvez porque vejam a sua própria imagem refletida nele, preferem espiar, por cima do muro, para Miami; ou, os mais bem educados, para Paris). À medida, contudo, que se aproxima a data da inauguração da refinaria que também levará seu nome, em Suape, e do Bicentenário das Independências, a figura do general deverá aparecer nos noticiários. E graças a ele e aos seus companheiros, quando os hermanos estiverem fazendo a sua festa, em 2010, poderemos lembrar que pelo menos um punhado de pernambucanos também esteve lá, há duzentos anos, pelejando pela liberdade, pela democracia, pela igualdade social e pela unidade latino-americana - as causas de Simón Bolívar, o Libertador das Américas, e do General das Massas, José Inácio de Abreu e Lima.

Paulo Santos de Oliveira é jornalista e escritor, autor de A Noiva da Revolução.